O estado do mundo na Mostra Ecofalante

A programação da Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, cuja sexta edição começa nesta quarta em São Paulo, faz uma leitura bem ampla do conceito de meio-ambiente. Na verdade, sua pauta é socioambiental, o que abrange questões de urbanização, convivência virtual, identidade e sobrevivência de etnias, entre outras. Este ano, a mostra homenageia o documentarista Vincent Carelli (de Corumbiara e Martírio) e promove a retrospectiva “A Amazônia no Imaginário Cinematográfico Brasileiro”.

Uma das grandes atrações internacionais é o documentário Eis os Delírios do Mundo Conectado (cartaz à esquerda), no qual Werner Herzog investiga casos extremos de uso e invenção na internet.  Um texto meu sobre esse filme pode ser lido aqui. Para quem quiser recuar aos tempos em que a conexão tecnológica era apenas um sonho pode se regalar com outro doc, Sonhos Conectados, de Manu Luksch, Martin Reinhart e Thomas Tode.

Sonhos Conectados tem na narração de Tilda Swinton o seu maior atrativo. Além de narrar o  documentário de compilação, ela também interpreta, não sem certa ironia, algumas falas de filmes silenciosos. O tema são os primórdios da nossa era de conexão total. Uma cornucópia de imagens cobrindo do chamado primeiro cinema até os anos 1950 procura dar conta do desejo humano pela comunicação e interação à distância. É divertido ver como a fantasia cinematográfica antecipou, por exemplo, a televisão e o telefone sem fio.

Mas o filme procura falar também dos efeitos colaterais, como o uso da tecnologia para o controle social, a vigilância, a supressão da privacidade e a exploração do trabalho na indústria. E ainda dos que ficam de fora dessa utopia de um mundo globalizado, tendo as tribos africanas como um exemplo sempre à mão.

A narração tem um tom de crônica ensaística com toques de humor. Ainda assim, a enunciação um tanto monocórdica e a dispersão da pauta limitam um pouco a potência do ensaio. Além disso, o fato de usar a televisão como elemento central dá margem a um certo anacronismo, já que este é um veículo praticamente superado como tal.

A expressão “sonho” está também no título original de Império da Fantasia (Dream Empire), uma espantosa revelação do funcionamento do mercado imobiliário chinês. Para fazer o documentário, o diretor dinamarquês David Borenstein inscreveu-se como “figurante ocidental” numa pequena empresa de agenciamento. Nessa condição, pôde acompanhar por dentro o crescimento e os impasses da empresa de Yana, uma jovem migrante rural na afluente cidade de Chongqing. Yana e seu sócio contratavam estrangeiros brancos e negros (estes bem mais baratos…) para fazerem performances em coquetéis de lançamentos imobiliários ou mesmo posar de falsos habitantes ou profissionais em cidades fantasmas que precisavam ser povoadas.

O que se vê por trás das fachadas fantasiosas é todo um complexo de arrogância neocapitalista (um homem se diz dono de uma cidade inteira), engodo publicitário e a bad trip de um país que investiu tudo na aparência e precisa fechar as contas com a realidade. O “sonho chinês” termina quando os clientes percebem que compraram gato por lebre e se revoltam. O filme nos leva para dentro dessa fraude com grande habilidade e capricho formal.

Império da Fantasia faz um belo par na mostra com o brasileiro Banco Imobiliário. Aqui, Miguel Antunes Ramos crava suas lentes no contexto urbano e fornece uma visão inédita dos bastidores do mercado imobiliário em São Paulo. Embora dialogue com o cinema de crítica urbanística pernambucano, Banco Imobiliário dele difere ao trocar o ponto de vista acusatório externo por um interesse agudo pelo processo de trabalho e o pensamento de incorporadores, corretores e técnicos de marketing. Ao ouvi-los vendendo seu peixe e repassar seus discursos para o contexto do cinema, Ramos automaticamente desmonta a retórica da “venda do sonho”. À exceção de um momento em que interroga um incorporador sobre o conceito de cidade, o filme nunca tenta desqualificar os argumentos dos entrevistados, mas apenas selecionar os mais ilustrativos de uma lógica que vê o espaço urbano exclusivamente como “oportunidade”.

Imagens eloquentes e uma edição provedora de subtextos cobrem a peregrinação dos compradores de terrenos, a anatomia das maquetes, a marquetagem dos showrooms  e as justificativas estéticas dos modernos estandes de venda, verdadeiros parques temáticos. Esse dossiê de dissecação implacável é também sobejamente divertido. Banco Imobiliário poderia em vários momentos ser visto como uma comédia de Jacques Tati ou uma versão brasileira do clássico Salesman, de Albert e David Maysles.

Aracati, de Julia de Simone e Aline Portugal, é um raro filme sobre o vento. Uma área do sertão cearense surge modificada por grandes intervenções da engenharia e da tecnologia. Gigantescos moinhos eólicos fatiam a paisagem, uma cidade foi inundada para dar lugar a um açude no Vale do Jaguaribe. Um pouco na linha do cinema de Jia Zhang-ke, as diretoras documentam esse cenário sem pressa e com um refinado senso de construção estética. Seguem a pista do vento aracati, do litoral para o interior do estado, colhendo o testemunho e as fabulações de alguns poucos e fortes personagens.

Em Aracati, estamos mais próximos da contemplação que de uma visão crítico-sociológica do progresso. Há tanto o cavaleiro quase medieval em seu isolamento e o camponês que sabe observar o vento quanto o sertanejo performático que chega a construir uma teoria instintiva do documentário diante da câmera. A memória de um passado não tão distante já vai sendo empurrada pelo vento para o esquecimento, e o filme tenta capturar vestígios dessa passagem. Aracati nem sempre transita com suavidade entre o olhar para a Natureza e o contato humano. Mas isso não o impede de ser um documentário tão bonito quanto inquietante.

No chileno O Vento Sabe que Volto à Casa, o vento carrega um sentido metafórico. Sobre esse doc, escrevi aqui.

A sessão de abertura da Mostra Ecofalante, na quarta-feira, vai apresentar o documentário Amanhã, de Cyril Dion e Mélanie Laurent, que fez certo sucesso na França. É o típico representante do ”cinema verde”: um painel de iniciativas, colhidas em várias partes do mundo, no rumo de um futuro mais sustentável e democrático. Colocando-se de modo um tanto lúdico diante das câmeras, a pequena equipe viaja pelos EUA, Europa,  Islândia e Índia em busca desses casos exemplares. Eles partem da agricultura  (fazendas urbanas, culturas conjugadas, permacultura e outras formas de oposição à agricultura industrial), passam pela questão das fontes alternativas de energia e tratamento do lixo, pela criação de moedas locais com vistas ao empoderamento de cidades e comunidades, chegando enfim à necessidade de novas formas de representação popular na política e uma nova visão do processo educacional.

Cyril e Mélanie cruzam diversas fronteiras e assuntos, mas cuidam para que uma linha de coerência e desdobramento lógico forneça unidade ao filme. Como convém ao “cinema verde” mainstream, uma aura de simpatia e otimismo reveste esse alerta contra o apocalipse iminente da raça humana. Jovens carismáticos, belas imagens, edição ágil e músicas estimulantes contribuem para a intenção de inspirar e gerar esperança. O filme certo para abrir o evento com um toque positivo.

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