Os silêncios de um pai e de um país

FICO TE DEVENDO UMA CARTA SOBRE O BRASIL

Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil é um filme composto de muitos falares e alguns silenciares. Carol Benjamin conheceu a história do seu pai, César Benjamin, sobretudo através da mãe dele, Iramaya Benjamin (1924-2012). Dona de casa, esposa de um coronel do Exército, Iramaya descobriu a política quando precisou lutar pela libertação de seus filhos, César e Cid, ativistas presos durante a ditadura. Transformou-se num protótipo de mãe-coragem, militando até o fim da vida no Comitê Brasileiro pela Anistia.

Em 2013, em visita à Suécia, onde o pai estivera exilado, Carol recebeu de Marianne Eyre, veterana integrante do braço sueco da Anistia Internacional, um lote de cartas trocadas com Iramaya, testemunhas de uma longa e calorosa amizade. Foi quando ela decidiu concretizar a já antiga ideia de fazer um filme sobre os dramas de sua família a partir da figura admirável da avó. As cartas de Iramaya a Marianne formam o núcleo principal do documentário, junto a escritos de César nos cinco anos de prisão (sendo três anos e meio em solitárias).

César não quis falar para o filme da filha. Ele demorou 36 anos para começar a se abrir sobre o período que passou na prisão e sofreu torturas. Sua trajetória política desde que voltou do exílio é tortuosa – de cofundador do PT a membro temporário do PSOL e depois a crítico acerbo do lulismo, tendo chegado a fazer sórdidas declarações contra Lula. Carol navega com delicadeza e cuidado nesse mar de memórias e silenciamentos, chegando à conclusão de que seu pai nem mesmo costuma se referir a Iramaya e as batalhas dela para libertá-lo. Sobre as razões dessa e de outras distâncias, Carol não tem respostas definitivas.

A essa “caixa preta” representada pelo pai, somam-se na consciência de Carol o mutismo do país com relação aos crimes dos militares, o equívoco da Lei de Anistia que os deixou impunes, a falta de reparação histórica e a ocultação dos arquivos da ditadura. O Brasil é mesmo o país da dissimulação e da acomodação, especialmente quando isso favorece os piores.

Em contrapartida a tantos silêncios, Carol Benjamin fala. Principalmente, expõe a fala e as cartas de Iramaya, cheias ao mesmo tempo de simplicidade e firmeza. A cineasta visita sua “segunda avó” Marianne e membros da Anistia Internacional em Estocolmo, recupera arquivos notáveis como a emocionada recepção de Cid a César no exílio e as participações de Iramaya em manifestações pela anistia.

Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil vem se somar a outros excelentes documentários, como Diário de uma Busca Marighella, que reexaminam episódios da ditadura pelo olhar dos filhos daquele tempo. Alguns excessos de intervenções sonoras na primeira metade não chegam a comprometer o senso de medida demonstrado em todo o filme no trato com as sugestões imagéticas e o tom confessional adotado.

Mais que uma reflexão de filha/neta, este é um filme sobre maternidade, suas dores e preocupações. Tanto que Carol o conclui com uma carta a seus dois filhos, tingida na esperança de que os silêncios não predominem no futuro deles. E que os caminhos tomados pelo Brasil nos dois últimos anos não selem o destino dos meninos nas trevas da distopia.

2 comentários sobre “Os silêncios de um pai e de um país

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