Eu bem que tentei convencer alguns amigos documentaristas a fazerem um filme sobre Taiguara. Esse extraordinário cantor e compositor, um dos mais talentosos da MPB, foi dono de uma história pessoal fascinante. Afora um especial recente da TV Cultura e pequenas homenagens de fãs nas redes sociais, não conheço nenhum trabalho audiovisual dedicado ao autor de Hoje e Universo no Teu Corpo.
Assim foi que resolvi assumir a tarefa de propor esta videomontagem. Sozinho, silenciosa e domesticamente, reuni tudo o que pude encontrar na internet e em acervos virtuais da imprensa sobre o artista e editei o vídeo de longa-metragem Taiguara – Onde Andará teu Sabiá?.
À exceção de um clipe de Françoise Hardy interpretando a versão francesa de Transa e de fragmentos de Vinicius de Moraes e Dóris Monteiro, a única voz que se ouve no vídeo é a do próprio Taiguara, seja contando e comentando sua trajetória, seja cantando 47 canções ou trechos de canções, quase todas de sua autoria. O eixo principal é um depoimento autobiográfico em áudio concedido em 1984 ao jornalista Aramis Millarch. Diversos shows e entrevistas da televisão compõem o seu perfil, acrescidos de trechos de filmes que cineastas amigos gentilmente me autorizaram a utilizar.
Nascido em Montevidéu e criado no Rio de Janeiro, entre Santa Teresa e a Lapa, Taiguara Chalar da Silva (1945-1996) surgiu na cena musical em São Paulo, no começo dos anos 1960. De shows universitários ao Juão Sebastião Bar e dali aos grandes festivais de música, a carreira do rapaz progrediu como cantor romântico – cabelo alisado, voz perfeita e esboço de galã no cinema e até numa fotonovela clicada em Hollywood.
Suas letras cheias de insinuações eróticas e políticas despertaram o furor da censura na década de 1970, fazendo dele o compositor mais vetado da época (mais que Chico Buarque ou Geraldo Vandré em número de composições banidas ou alteradas pela ação dos censores). A perseguição o levou a exilar-se primeiro na Europa, depois na África. A vida fora do país só fez acentuar sua indignação contra a ditadura brasileira, a lógica capitalista excludente e as garras longas do imperialismo.
Quando voltou ao Brasil, na virada dos anos 1980, Taiguara parecia outra pessoa (atenção! Eu disse “parecia”). Assinou uma coluna fumegante no jornal esquerdista Hora do Povo e costumava rechear seus shows de chamamentos à revolução e ao socialismo. Gravou discos de louvor às culturas indígena e africana, chegando a se casar com a líder indígena Eliane Potiguara. A amizade com Luís Carlos Prestes tinha matizes de relação pai-filho.
Engana-se, porém, quem pensa que Taiguara mudou de pele entre uma década e outra. Quem reparar as letras de sua fase romântica verá os apelos por mudança, liberdade, solidariedade e “uma gente que não viva só pra si”. Por outro lado, mesmo no período mais engajado, quando chegou a mudar-se para o bairro paulista do Tatuapé para ficar mais próximo do meio operário, suas canções políticas guardavam a mesma seiva romântica. Como nesses versos de Guarânia Guarani: “Com fé na companheira ao lado / Eu sonhei com essa terra / Onde o céu nos sorri”.
Nos limites modestos de uma produção doméstica, assumindo as deficiências do material disponível nas redes, minha videomontagem procura pontuar os momentos mais importantes do itinerário desse personagem épico e ao mesmo tempo desmesuradamente humano. Espero que, depois de vê-lo, alguém se anime a produzir um filme de verdade para reinstalar Taiguara no firmamento dos nossos grandes músicos.
Taiguara – Onde Andará teu Sabiá? vai circular apenas na plataforma Vimeo, longe de qualquer exploração comercial, monetização ou exibição em cinemas ou festivais. Não é mais que um exercício narrativo e o tributo de um fã. Espero que vocês gostem e procurem as gravações do “Menino da Silva”. Em especial o álbum Imyra Tayra Ipy, Taiguara, um dos discos mais geniais já feitos sob o céu brasileiro.
O vídeo estará disponível a partir de amanhã (1/12) neste link. Também amanhã, às 17h30, vou comentar sobre o trabalho e a trajetória do Taiguara junto com o crítico de música Antonio Carlos Miguel e o anfitrião Gustavo Conde no seu canal do Youtube, com transmissão também no canal do Grupo Prerrogativas e ao vivo na TVT de São Paulo.
Um teaser:
Que maravilha!
Eu era criança e acompanhava um festival e ouvi , pela primeira vez Taiguara cantando Hoje.
Hoje canto Taiguara em minhas aulas de música.
Que bom o registro, afinal, Hoje trago em meu peito as marcas do meu… abraço a sua ausência
Parabéns pelo brilhante documentário. Pesquisas irrepreensível. Taiguara narra os fatos e dá luz ao seu materialismo histórico e dialético.
Genial seu empenho e dedicação nesse “corpo-a-corpo” promissor, lúcido e corajoso para reavivar em nossos corações sofridos, essa lenda chamada Taiguara, tão olvidado pela cultura hegemônica do Brasil, reconhecidamente mal-intencionada e quase que empenhada, eu diria, em soterrar nossos mais legítimos representantes da cultura popular, que não disseram “Amén” para o “sistema”, mas que em contrapartida, ofereceram, generosamente, em holocausto, suas próprias vidas. A trajetória humana, artística e política de Taiguara, infelizmente tão cedo ceifada, merece ser evocada e cantada em prosa e verso, sempre que nos virmos ameaçados pelas chibatas da injustiça, ignorância e obscurantismo, como nos tempos atuais. Aguardamos seu trabalho com enorme expectativa, Carlinhos. Ele será, por certo, uma “bandeira” ostensiva e necessária, a ser içada nesse “turning-point” da nossa vida política e social, para trazê-lo à cena e provocar as consciências e corações de tantos que o perseguiram e brutalmente o sacrificaram. Que venha, mesmo que em fragmentos cinematográficos, seu trabalho de pesquisa para resgatar nosso grande e inesquecível Taiguara!
Muito grato pelas pelo depoimento, Nelson, e pelas palavras de estímulo.