BARBIE
Até algum tempo atrás, eram os filmes que geravam subprodutos: brinquedos, roupas, objetos, etc. Agora é o contrário: produtos geram filmes em gêneros novos que eu chamo de mercodramas ou mercomédias. Blackberry, Air, Tetris, Cheetos, Lego… Cada um tem recebido sua história empapada de empreendedorismo e acenos à condição contemporânea. Mas nenhum chegou com tamanha campanha de marketing e, acredito, com tanta disposição de comentar o mundo real como Barbie.
Até muito tempo atrás, as meninas queriam ser bonecas. A mercomédia Barbie celebra o tempo em que bonecas querem ser gente e cruzar o portal que separa a terra da bonequice do mundo real. A rigor, Pinóquio já passava por essa síndrome em 1883, quando Carlo Collodi o criou como um boneco de madeira que aspirava a ser de carne e osso.
A Barbie de Greta Gerwig entra em crise existencial porque a ideia de morte, não se sabe como, surge de repente em sua loura cabeça. Esse é o gatilho que detona o conflito na intimidade da Barbie clássica, ou Estereotipada (Margot Robbie). De uma hora para outra, sua vida em rosa começa a dar defeito no reino perfeito da Barbieland, onde tudo é fingimento e felicidade absoluta. Perante a ameaça da celulite e da finitude, Barbie precisa viajar ao Mundo Real e descobrir a origem de seu transtorno.
A grande sacada do roteiro original de Greta e Noah Baumbach é trazer junto o paspalhão Ken (Ryan Gosling) para o choque de realidade. Numa Los Angeles desglamourizada, em tudo oposta à Barbieland, Ken descobre o seu mundo ideal: aquele dominado pelos machos, com seus cavalos e seu culto da força e da violência. Ao tentar implantar o patriarcado na Barbieland, Ken vai precipitar os acontecimentos decisivos do filme.
A história da boneca Barbie, iniciada em 1959, é uma sucessão de adaptações ao ideário de cada época. Depois de criada segundo um modelo desejado de moça estadunidense (magra, loura e fashion), surgiram as Barbies negra, hispânica, asiática, gordinha… E até um Ken com vitiligo. A adoção de características próprias da diversidade humana é uma estratégia comercial que visa atender às demandas identitárias ao mesmo tempo que perpetua o interesse pelo produto.
Barbie sempre carregou a ambivalência de ser um modelo de mulher-boneca, mas também estimular sentimentos de independência feminina. Como ícone cultural, inspirou criações de Andy Warhol, Al Carbee e outros artistas, além de protagonizar séries na TV e na web. O blockbuster de Greta Gerwig (Lady Bird, Adoráveis Mulheres) traz uma Barbie que se recusa a “voltar para a caix(inh)a” e encontra uma parceira humana (America Ferrera) capaz de discursar sobre a dificuldade de ser mulher numa sociedade em que dela se exigem atitudes conflitantes entre si.
Por mais que os enunciados feministas sejam claros e o deboche da masculinidade seja divertido, Barbie não consegue esconder seu contorcionismo para que a boneca se torne um símbolo de empoderamento feminino. Basta ver a conversão da garota Sasha (Ariana Greenblatt) de ativista iracunda (“Você atrasou o feminismo em 50 anos, sua fascista!”) em uma suave e rósea admiradora da Barbie revolucionária. Uma revolução que, afinal, consiste em manter tudo como era antes: um mundo perfeito onde as mulheres são felizes todos os dias, mesmo que ninguém tenha órgãos genitais.
O filme é um espetáculo escandalosamente hollywoodiano, amparado sobretudo na cenografia fantasiosa e no senso de autoderrisão. Não faltam referências depreciativas à boneca, e a própria Mattel, empresa fabricante, aparece como um antro de executivos brancos, machistas e ridículos. Ecos de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Toy Story e musicais de Bollywood completam a barganha de Barbie entre a sátira social e o reposicionamento de produto.
>> Barbie está nos cinemas.


Carlos, em meu comentário esqueci de elogiar o seu excelente texto. Muito bom. A sacada de reposicionar a mercadoria é tudo. É claro que os “neoliberais progressistas” vão adorar.
Um abraço
Seu reconhecimento vale ouro.
Achei interessante a cambada bolso/fascista estar recomendando boicote ao filme. Boicote a filme de boneca? Aí tem coisa, pensei. Estou curioso…
Eu acho que eles foram contratados pela supercampanha de marketing do filme, kkkkkk
Vou deixar para ver no streaming, mas me parece bem enjoativo pelo trailer.
Faz bem. Mas, apesar do excesso de calda de cereja, tem lá seus momentos divertidos.
Me divirto no streaming, rs rs Abçs