Poesia numa hora dessas? O que pode a poesia contra a barbárie?
Fiz essa segunda pergunta a Carlos Adriano. Tomo a liberdade de compartilhar sua resposta:
“acho que não pode nada…
e nem é por causa do vaticínio / veredito do Adorno…
a poesia transforma a tristeza em beleza (ou em uma tristeza “digna” do belo).
mas o sofrimento humano não alivia nem apazigua.
um esforço-sísifo talvez seja não esquecer (não perdoar)…”
O novo curta poético-político-experimental de Adriano parte de imagens excruciantes da destruição de Gaza por Israel. Drones sobrevoam bairros arrasados, crianças gravemente feridas estão à espera de socorro, o desespero impera num hospital arrasado. E eis que de repente Adriano corta para as imagens ingênuas de uma dança de Dickson no pré-cinema e do ilusionista chinês de Méliès. Nem Dickson nem Méliès sonhavam que o cinema viria a servir para testemunhar o horror da vingança israelense.
A fotografia de uma bandeira palestina com um campo de papoulas em primeiro plano (acima) parece então sintetizar a transformação da tristeza em beleza. Não como simples apropriação estética do horror, mas como um desejo de transcendência amorosa, um movimento de afeto e solidariedade aos palestinos.
E vêm as flores, mil e uma flores das noites de massacre em Gaza.
A flor renasce e renasce em cenas de filmes de Pasolini, Kiarostami, Mário Peixoto, Alice Guy-Blaché, Godard… E em frases/versos de Benjamin, Omar Khayan, Valéry, Safo, E.E.Cummings, Augusto de Campos, Forugh Farrokhzad… Foi com flores (os cravos) que os portugueses se livraram da ditadura há 50 anos.
Nesse “panaroma” há um cheiro de morte junto a todas essas flores. Em meio a um tiroteio em algum ponto de Gaza, uma jornalista palestina pede socorro para a colega Shireen Abu Akleh, morta naquele instante ao seu lado. Adriano ousa mesmo justapor com um corte seco a imagem de uma criança morta à do ator Ninetto Davoli caído em La Sequenza dei Fiori di Carta, de Pasolini (correção: o corte é do próprio Pasolini).
Cinema e realidade como espelhos um do outro. Os espelhos também estão ali – talvez porque precisamos nos ver na tragédia alheia que não conseguimos evitar.
Os contrastes e aproximações de grande efeito são a linguagem de Adriano, a par de um cipoal de referências que justificariam a exibição desse filme em looping de pelo menos duas vezes para melhor acessarmos seu perfume perturbador.
05/04/2024 às 18h00- Estação Net de Cinema Botafogo
06/04/2024 às 15h00- Estação Net de Cinema Rio (Sala 5)
12/04/2024 às 16h00- Espaço Itaú de Cinema Augusta
14/04/2024 às 19h30- IMS Paulista


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