Seringueiros: na guerra, nas lutas

Resenhas dos documentários SOLDADOS DA BORRACHA e EMPATE 

Pneus para a vitória

Quando os pracinhas voltaram da Itália, foram recebidos como heróis e nunca deixaram de ser reverenciados. Mas quem conhece os soldados da borracha, que foram recrutados ou partiram como voluntários para a Amazônia a fim de participar do esforço de guerra extraindo borracha para pneus, artefatos e até bombas? “Fomos nós que ganhamos a guerra”, diz um dos poucos sobreviventes em Soldados da Borracha, mais um ótimo documentário de Wolney Oliveira.

A equiparação com os veteranos da FEB é uma promessa nunca cumprida pelo governo brasileiro. A reivindicação de uma indenização se estendeu até 2013, no governo Dilma. Soldados da Borracha reconta essa saga com a qualidade que nos acostumamos a encontrar nos filmes do realizador cearense: Os Últimos Cangaceiros, Memórias da Chuva, Lampião Governador do Sertão, Milagre em Juazeiro.

Embora já tenha sido objeto de pelo menos quatro livros – um dos quais organizado pelo próprio Wolney –, a história daqueles homens e mulheres ainda é desconhecida da maioria dos brasileiros. Em sua origem está o acordo de milhões de dólares entre Getúlio Vargas e o governo dos EUA, que previa a troca de investimentos na Amazônia pelo fornecimento da preciosa borracha. Uma negociação econômica em plena guerra.

Assim o governo brasileiro, através do S.E.M.T.A. (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia), enviou para os seringais amazônicos cerca de 55.000 pessoas, em sua imensa maioria nordestinas, das quais aproximadamente 30.000 morreram em serviço. A comparação estatística informada pelo filme é chocante, pois dos 25.434 expedicionários que foram combater na Itália, morreram 243. Uma morte que seja, já é muito, mas o paralelo diz bastante sobre o “quase genocídio” praticado aqui dentro.

Wolney entrevistou 23 sobreviventes, que narram com vivacidade suas experiências como soldados da borracha. Em geral, fugiam da seca do Nordeste em busca da fartura e das boas condições de trabalho anunciadas na propaganda e nos contratos. Havia a esperança de “enricar na Amazônia”. Mas a desilusão começava já na viagem de seus estados natais à concentração em Fortaleza e depois para as diversas regiões da Amazônia. A jornada levava meses, sofria risco de naufrágios e mortes pelo caminho. No destino final, encontravam uma situação análoga à escravidão, com péssimas condições alimentares e sanitárias, muita malária e um sistema de endividamento que os mantinha em rédea curta. Quem tentasse fugir podia ser acorrentado como castigo. As feras da selva e os indígenas hostis representavam um perigo constante.

Soldados da Borracha é o relato de um grande fracasso institucional, mas também um apanhado de recordações que se equipara aos melhores filmes de Eduardo Coutinho. Os personagens centrais, todos idosos, têm hoje um distanciamento que favorece o humor e a riqueza da prosódia nordestina. Muitos deles e delas relembram canções que comentavam o episódio, as danças de homem com homem à falta quase total de mulheres, a saudade dos familiares distantes. A cena de um veterano seringueiro imitando um discurso de Getúlio Vargas é um de muitos momentos impagáveis.

Além de pontuais considerações de historiadores, o filme reúne um material de arquivo precioso, que consegue colocar em imagens de época cada etapa dessa memória. O roteiro de Wolney e a montagem de Leyda Nápoles e Mair Tavares garantem clareza, agilidade e equilíbrio entre os vários materiais que compõem o filme.

Não fica de fora a complexidade do assunto, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento (ou sua falta) do valor dos soldados da borracha. As cenas finais, flagradas no Congresso Nacional, são especialmente perturbadoras entre a persistência da deputada Perpétua Almeida (PCdoB do Acre), que lutou pela indenização afinal obtida, e as expectativas mais elevadas dos velhos seringueiros.

>> A estreia de Soldados da Borracha foi adiada de última hora.

Com o legado de Chico Mendes

Nas lutas nais recentes dos seringueiros, o nome de Chico Mendes é uma memória e uma referência incontornáveis. Quase trinta anos depois de sua morte em 1988, Sérgio Carvalho (do premiado Noites Alienígenas) saiu em busca dos trabalhadores rurais que carregam sua bandeira em Xapuri, no Acre, mais precisamente na Reserva Extrativista Chico Mendes. Mais do que apenas recolher a herança do líder, o documentário Empate verificou as mudanças que se processaram na própria mobilização dos seringueiros.

Empate era o nome dado a uma estratégia de enfrentamento dos fazendeiros e grileiros que ameaçavam as comunidades da “seringa” nos anos 1970 e 1980. Chico Mendes à frente, os trabalhadores se dirigiam aos pontos de invasão desarmados, levando as crianças e mulheres à frente e cantando o Hino Nacional. Procuravam convencer a jagunçada a desistir da violência e baixar as armas. Assim o Acre conseguiu manter 80% de sua floresta em pé.

Depois que o golpe de 2016 depôs Dilma Rousseff, o latifúndio voltou à carga, tentando expulsar as famílias seringueiras que ainda não estavam protegidas pela reserva. Incêndios criminosos e derrubada de casas serviam para pressionar os seringueiros a abrir mão de seus pedaços de terra. Foi quando Sérgio Carvalho tomou o pulso da disposição dos lavradores para a luta contra os “fazedores de deserto”, que derrubam a floresta para dar terra ao pasto.

Em 2017, porém, a pureza da opção Chico Mendes havia ficado para trás. Os novos sindicalistas buscavam uma conciliação entre a lavoura e a criação de gado dentro de limites sustentáveis. Os agroboys já se misturavam com os seringueiros em rodeios e estilo de se vestir. Ficava para os mais velhos, como o venerando Raimundão, a reorganização da luta política com a possível retomada dos empates.

O filme não chega a apresentar uma conclusão desse processo às vésperas do governo Bolsonaro, o que o torna um pouco defasado. Mas o que importa é sondar em que termos se dá a permanência do legado de Chico Mendes. Com o adendo de belíssimos long shots do campo acreano.

>> Empate está nos cinemas.

 

 

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