O cinema e o “novo coletivo”

Os multiplexes, o Imax, o 3-D e os sistemas sofisticados de som estão lutando o bom combate, mas será que o futuro do cinema como fruição coletiva está com os dias contados? Eis uma pergunta que frequenta muitas conversas sobre o assunto. E não foi diferente em Salvador, na última sexta-feira, quando jantei com o crítico e professor da USP Rubens Machado.

Rubens levantou essa bola. De fato, quando a TV se instalou como mídia dominante, muito do consumo audiovisual deixou de ser coletivo e passou a ser familiar ou de pequenos grupos. Agora, com os computadores e celulares, o audiovisual passou a ser consumido individualmente, numa tendência que parece irreversível. Rubens citou isso como uma perda para a arte do cinema. Eu coloquei uma dúvida na mesa: será mesmo que o caráter coletivo é intrínseco ao cinema, ou é apenas uma contingência técnica e econômica surgida com o cinematógrafo e adotada pela indústria?

O pré-cinema, como o kinetoscópio e o mutoscópio de Edison, era destinado em sua maioria à fruição individual. Só mais tarde, com o advento do projetor e das telas grandes e verticais, é que o cinema tornou-se espetáculo para plateias maiores, em regime de simultaneidade. A indústria cinematográfica consagrou o modelo como negócio, em que o número de espectadores para uma mesma sessão passou a ser a chave da viabilidade financeira. A indústria investiu, então, nesse formato, criando os “palácios de sonho” e produzindo tecnologias cada vez melhores para a exibição coletiva com imagens e sons em escala extraordinária. A ponto de muitas vezes confundirmos o efeito de grupo com a qualidade do filme.

Rubens argumentou que, mesmo no pré-cinema, as exibições individuais se davam em espaços públicos. Ele dá grande importância a essa questão do espaço público. O fator coletivo, dizia ele, amplia a experiência do cinema através da interatividade na plateia e da contaminação do riso e da emoção. Estava certo. Não é a mesma coisa assistir a O Pequeno Nicolau num cinema lotado e solitariamente num monitor de notebook. Algo se perde nessa redução, não tanto pelo tamanho da tela, mas sobretudo pela falta de companhia. Resta saber quanto da qualidade da comédia de Laurent Tirard depende da experiência coletiva e quanto reside no filme de per si.

Além disso, contra-argumentei, o consumo individual está longe de se parecer com um vício privado. Ao contrário, tende hoje a se coletivizar virtualmente por meio das redes sociais. Quando enviamos um arquivo ou um link para um amigo, trocamos nossas impressões no Facebook ou no Twitter, estamos formando grupos de fruição. Cineclubes virtuais se constroem à base de downloads, comentários, recomendações etc. Acredito que, mesmo cada um em sua casa, estamos vivendo uma espécie de “novo coletivo”.

Um abraço, Rubens, o papo foi ótimo.

14 comentários sobre “O cinema e o “novo coletivo”

  1. Esta idéia de indústria é algo muito forte nos EUA, desde o começo do século do cinema (de acordo com Jacques Aumont no seu texto Moderno?). Tanto que as primeiras escolas dedicadas a coisa do cinema eram de administração de salas (1927) . As escolas de arte cinematográfica estavam na Europa, como a de Moscou (1925?), Lodz, Centro etc. Creio, mas acho que nos EUA, as escolas de cinema são um fato da década de 1950. Enquanto isto, eles foram edulcorando a exibição cinematográfica. O primeiro executivo da Cinemark quando aqui aportou, em 1995, dizia que o Brasil estava na idade da pedra da exibição cinematográfica. Não por acaso que os EUA tem o maior Box Office do planeta. Só em 2009, o Comunidade Européia conseguiu se aproximar em público e renda do mercado estadunidense.

  2. Transcrevo, com a devida autorização, comentário/correção do cineasta e pesquisador de early cinema Carlos Adriano: “Parabenizo pelo post. Uma ressalva: o kinetoscópio é de Edison, mas o mutoscópio não: foi criado por Dickson (que também contribuiu para o kinetoscópio) e Casler. Eram destinados inteiramente ao espectador individual (peep-show device), exibidos em feiras e arcadas, e que inclusive tiveram uma versão doméstica na Europa, o kinora. Entrando na seara do post, acrescento que pouco após lançar o mutoscópio, a companhia produziu um sistema de projeção em 68mm, com o projetor biograph.”

  3. O blog está todo orgulhoso com os comentários de gente tão ilustre. A questão que levanto é se a resistência das salas coletivas vai se tornando cada vez mais uma questão de indústria, e não de arte cinematográfica. Uma batalha se instalou: de um lado, a luta do sistema industrial para tirar o espectador de casa; de outro, a corrida tecnológica para tornar a fruição audiovisual doméstica cada vez melhor. Qual será o desfecho?

  4. Meus caros:
    A minha hipótese é que sem a sala de cinema, este seria outra coisa qualquer, menos aquilo que chamamos de cinema. Isto porque a sala foi o ponto de convergencia do público que encontrava no espetáculo cinematográfico um acontecimento social, regular e acessível . Não e a toa que os americanos entenderam isto desde o principio: o público, médio, frequenta espaços cinematográficos. Os filmes eram mera desculpa para um evento social. A evolução do negocio cinematográfico tem tudo a ver com esta lógica. Mas, o que acontece é o fato de que hábitos sociais mudam. Conscientes disto, os exibidores estão sempre aperfeiçoando os seus espaços com a finalidade de manter a fidelidade da clientela. O filme em si é que se tornou uma categoria de mercadoria que se adaptou as novas formas de entretenimento.

  5. Como o papo é interessante, gostaria de participar com uma observação. No início do cinema, a grosso modo, surgem quase simultaneamente duas formas básicas de comercialização do filme. Edison vendendo pequenos filmes para seus aparelhos de visão individual (kinetoscópio), em que cada pessoa botava uma moeda na máquina e via o filme, e os irmãos Lumière inaugurando a sessão de cinema, em que vários espectadores pagavam ingresso para ver a mesma exibição do filme projetado (cinematógrafo). Naquele momento, o cinematógrafo era o modelo comercial mais lucrativo, pois num único dia se vendiam muitos mais ingressos em várias sessões do que eram colocadas moedas no aparelho de Edison, cuja idéia inicial era espalhar kinetoscópios em todo os lugares.
    Hoje me parece que finalmente o modelo pensado por Edison deu certo, pois com o celular e computador, praticamente todo mundo tem o seu “kinetoscópio” e pode ver o mesmo filme, se não no mesmo momento e espaço (a sala de cinema), em circunstâncias semelhantes.
    O que me parece instigante é pensar se a internet pode ser encarada como um “novo espaço público”, com a visão do filme em streaming ou por download e sua discussão no twitter, facebook etc, representando novas formas de socialibilidade estimuladas pela fruição audiovisual.
    abs
    Rafael

  6. A falta de educação do público nos cinemas me parece estar ligada ao DVD, já que as pessoas comentam, comem e gritam como se estivessem no sofá de casa. Não existe a preocupação em modular o tom de voz e falar mais baixo para não incomodar o outro, as pessoas simplesmente falam no volume normal e pronto!

    A coletividade do cinema nasceu com ele, mas o conforto dos DVDs e a falta das salas de rua tornam o ato de ir ao cinema um evento. Nos shoppings as atenções estão divididas e as pessoas “também vão ver um filme”. Nos cinemas de rua as pessoas estão ali “para ver o filme”. Essa pequena diferença é significativa.

    Mas me lembrei de um momento muito especial. Era carnaval, fim de namoro, solidão total e nenhuma vontade de cair na gandaia com os amigos. Entrei no Paissandu para ver “Melhor é Impossível” com Jack Nicholson e Helen Hunt na tentativa de melhorar o astral.

    Entrei sozinho e triste, mas depois de 139 minutos de riso coletivo esqueci por completo o motivo da minha tristeza. A platéia ria como se fosse uma onda e, no fim da sessão, pessoas que não se conheciam saíram comentando e relembrando algumas cenas.

    É. Vale a pena correr o risco. O prazer de ver um bom filme ainda é maior do que as possíveis chateações.

    Grande abraço,

    Christian Jafas

  7. Carlos, ótimo desenvolvimento da nossa conversa temos aqui! Vou tentar me explicar um pouco mais, não sei se tenho razão, só vejo com curiosidade e atenção ao fato de que “estarmos” é diferente de “nos sentirmos” num espaço público. A 1ª condição não é necessária nem suficiente para a segunda, mas ajuda muito, exerce um papel decisivo. A civilidade ou falta de civilidade do público circunstante nas salas de cinema depende disso. E nossa percepção muda (ainda que insondavelmente), nossa sensibilidade para o filme não é a mesma, a de estamos em casa ou nas salas, para qualquer filme, ainda que seja mais evidente em comédias, nós veremos sempre de outro modo – essa é a minha hipótese. Tudo bem que o casuísmo ou o pentelhismo de um vizinho chato nos atrapalha a fruição – mas mudar de cadeira costuma resolver. E depois, preocupa-me pensar nos incômodos de estar sozinho em casa durante um filme, exagerando um pouco: me parece que faltou algo, perdi uma parte do filme. A internet e o dvd podem ter trazido uma dimensão coletiva à fruição caseira, que a torna uma experiência pública também. Porém, digamos que ela é mais incerta. Há um eremita crescendo em nós a cada década, um eremita civilizado? Haverá polis sem espaço público? Os eremitas coletivizados do futuro seriam mais ou menos politizados? Os obesos internautas galáticos de Wall-E convivem num salão, numa nave, e o filme é otimista. Eu diria que o admirável mundo novo não está definido, nem vem datado de 1984. Mas que a indústria cultural está nos fabricando de um modo assustador, não tenho dúvida.

  8. Ver comédia sozinho não é o ideal: a gargalhada coletiva é como um gol em jogo tenso. (Aliás, o evento humorísitico tem muito de tensão e alívio de tensão pelo inusitado: o que seria trágico se torna cômico).
    Mesmo que só um de nós ria de uma piada que só a gente entendeu (ou não entendeu que NÃO ERA para rir), a experiência de comédia me parece mais bem sucedida coletivamente do que em isolamento narcísico.
    Concordo que a gente, de certa forma, está (ou deveria estar) só vendo o filme memso que numa sala cheia. Isso acontece quando a gente curte cinema e quando a gente “entra” no clima do filme – mas ainda acho que é como estar só no meio da multidao. É e não é um evento solitário. É e não é coletivo. Paradoxo, oxímoro, seja lá o que for, acho que é assim.
    E a tela grande é a tela grande (por menores que estejam).
    Fico desanimado também (e muito desanimado) com a troca da fotografia em película pelas projeções digitais sem nem 20% dos recursos fotográficos da projeção em película.

  9. Na minha opinião, a coletividade do cinema reside, também, em outros aspectos que envolvem filmes. A exibição é uma etapa muito importante, e talvez a mais evidente de uma possível coletividade, mas a pré-produção, a produção/set de filmagem, distribuição, e depois (não exatamente da sessão) o momento de discussões críticas, também têm seu espírito de coletivo. Sinto, mesmo nos dias que vou sozinha ao cinema e sem dividir minhas impressões volto pra casa, que estou compartilhando de uma manifestação rica, justamente por sua natureza de tantas interferências…

    • Tem toda razão, Maíra. A produção de cinema é algo essencialmente coletivo, muito embora os novos métodos e novas tecnologias também apontem para um certo cinema do “eu sozinho”, não é mesmo?

  10. Eu parei de frequentar cinema com o fim do cinema de rua. Morando na Tijuca há mais de trinta anos, me acostumei a facilidade de sair de casa muitas vezes de bermuda e escolher uma sala a cinco minutos de casa. Com o fim das maiorias das salas na Tijuca, praticamente parei de ir a cinema.

    Além do que acho muito desagradável espectadores comendo pipoca, rindo na hora de chorar e fazendo barulho, além do cheiro de pipoca.

    • Compartilho a tua ojeriza à pipoca e às conversas durante a projeção. Ir ao cinema, sobretudo em fins de semana, é programa de alto risco. No “novo coletivo”, podemos evitar tudo isso.

  11. De um modo geral, a experiência coletiva sempre foi uma forçação de barra para mim. Eu raramente ia ao cinema com amigo ou namorados. Quase sempre ia só. E era um momento para eu ficar só, para eu chorar só ou para rir só. Nunca fui fã de debater o filme depois, discutir filosofia, estética, linguagem depois da sessão. Era tudo uma experiência interior, uma forte viagem dentro de uma obra. Nada que pudesse ser imediatamente compartilhada.

    Mas, tirando os aborrecimentos por conta de outros clientes do cinema, teve uma sessão que foi coletiva para mim: a estreia de Dancer In The Dark no Festival do Rio. Foi o único momento em toda minha história cinematográfica que eu me senti conectado à plateia. E foi um transe coletivo. As pessoas não paravam de chorar (ou de rir). Quase ninguém conseguiu deixar a sala imediatamente após o final. E a programação estava atrasada. Então, eu me lembro dos funcionários do Odeon tentando, sem sucesso, pedir para que as pessoas saíssem da sala. Tinha gente que saía amparada. Outros saíam aluados… Foi uma catarse. Se era disso que o Rubens falava, eu o entendo. Mas, na minha experiência pessoal, cinema sempre foi eu e o filme.

    • Ótimo depoimento, Roberto. Algumas sessões são mesmo inesquecíveis. Ver um belo filme com elenco e equipe presentes na sala é algo especial. Lembro de Polyester no Festival do Rio, com a turma riscando os cartõezinhos para produzir os cheiros do filme e se divertindo com isso. Ou uma sessão recente de cinema interativo, em que a plateia votava nas opções de sequenciamento. De resto, a gente está sempre só.

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