Pílulas 40

EU, ANNA é um policial com tinturas de história de amor na maturidade. Seus maiores trunfos são a elegância de Charlotte Rampling e Gabriel Byrne, além de uma direção discreta que serve à história. Mas a trama é mais corriqueira do que soa a princípio e não nega a origem num best-seller de rotina. Um crime, alguns suspeitos, uma mulher misteriosa e um detetive que se deixa confundir entre a investigação e o interesse amoroso. A gente já viu muito disso, e as canções da trilha eram melhores.

RUSH é um belo espetáculo americano. Lida com performances, velocidade, competição. O apolíneo Niki Lauda e o dionisíaco James Hunt se enfrentam numa disputa não só de postos na Fórmula 1 durante o ano de 1976, mas também de egos, afetos e modos de vida. Às vezes a gente se sente meio infantilizado pela forma explícita e didática com que essa polarização é apresentada no roteiro de Peter Morgan. Há ali todo um cabedal de eficiência na comunicação de personalidades esquemáticas para qualquer público entender – incluindo as viradinhas que matizam temporariamente cada um dos lados para melhor reforçar a dualidade dominante. Os dois atores personificam à perfeição esse embate entre a ordem austríaca e o hedonismo britânico. A produção das cenas de corrida é impressionante, com uma quase indistinguível combinação de reencenações, material de arquivo e criações digitais. O desenho sonoro também é de cair o queixo. Certamente RUSH é a contraparte perfeita para o doc SENNA, que também fez muito sucesso mundo afora.

Visto no Festival do Rio: Ao contrário da Trilogia Qatsi e do média “Anima Mundi”, parcerias anteriores entre Godfrey Reggio e Philip Glass, não é muito fácil definir do que trata VISITANTES. Depois de um prólogo reminiscente do 2001 kubrickiano (um gorila encara a câmera, um travelling na superfície da Lua e o corte para um velho arranha-céu), somos confrontados com uma longa série de rostos que nos fitam em silêncio. De várias idades e etnias. A princípio, rostos impassíveis como o do gorila; mais adiante, rostos que alternam expressões do riso ao estupor. Aqui e ali, imagens de ruína apocalíptica: galpões e parque de diversões abandonados, floresta inundada, edifícios depauperados. Apesar de uma ou outra alusão à tecnologia, o que fica mais evidente é o valor do olhar, da expressão facial, da comunicação virtual que pode se estabelecer entre quem olha a câmera (ou algo no lugar dela) e quem olha a tela. Não por acaso, a última imagem é de uma plateia de cinema que nos duplica. Somos visitantes no planeta como no cinema. Efemeridade e ruína são o destino de tudo o que contém o universo. No curto tempo da visita, os homens se contemplam mutuamente e se emocionam. As imagens em impecável preto e branco (exceto um único plano colorido da Terra à distância) exploram os extremos de velocidade do slow motion e do time lapse. Mas o que nos arrasta e hipnotiza mesmo é a música a um só tempo melancólica e solene de Glass. Não fosse por ela, essa nova pensata de Reggio não iria além do lugar-comum filosófico e de uma estética razoavelmente ultrapassada.

Visto no Festival do Rio: A FILHA DE NINGUÉM, do coreano Hong Sang-soo, não tem a mesma verve de A VISITANTE FRANCESA, mas tem o charme, a leveza e a escrita surpreeendente do diretor. Uma jovem se despede da mãe que vai morar fora e tenta se libertar do amante casado. Só isso. Mas não precisa muito mais para Sang-soo nos encantar e divertir com os diálogos inesperados, a ternura gauche que se desprende dos relacionamentos e as simetrias que ele constrói ao longo de toda a narrativa, como ecos produzidos pelo acaso. A atriz Jung Eun-Chae encarna à perfeição a espontaneidade e a graça desse estilo. Em última instância, é um filme onírico sobre a solidão, pois a história toda se passa enquanto a protagonista cochila numa biblioteca em meio à leitura de “The Loneliness of the Dying”, de Norbert Elias. 

Visto na internet: WOLKE 9 (Nuvem 9), do alemão Andreas Dresen, é um drama seco e sóbrio, mas profundamente sensível, sobre uma mulher de 67 anos, casada há 30, que de repente se apaixona por outro homem. Inge (Ursula Werner) passa por diversas fases do “problema”: encantamento, checagem de diferenças, culpa, necessidade de contar para alguém, confissão, sofrimento, rearranjo… O filme vai desdobrando várias camadas com precisão e economia dramática, mostrando como o céu e o inferno convivem num episódio como esse. A separação, em uniões longas como essa, dificilmente chegam a um ponto de conciliação – e a dor de um frequentemente contamina o prazer do outro. Dresen devassa as emoções do trio com ênfase nos olhares e na linguagem corporal, servindo-se das falas apenas como pistas leves, lacunares. E as cenas de sexo entre idosos estão entre as mais veristas que já vi no cinema. O título é uma expressão que significa “estar nas nuvens”, em absoluta felicidade. No caso, temos uma problematização do termo. 

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