ANA. SEM TÍTULO na Mostra de SP
A certa altura de Ana. Sem Título, Lucia Murat deixa este comentário: “As minhas histórias me perseguem. Serão sempre as mesmas do passado ou será que elas se repetem hoje?” A diretora, ex-presa política, que não cessou de escavar as memórias da ditadura (suas e alheias) em filmes como Que Bom Te Ver Viva, A Memória que me Contam e Uma Longa Viagem, encontrou outro poderoso caminho para voltar ao assunto.
Numa bem urdida mescla entre documentário e ficção, seu novo filme acompanha a pesquisa da atriz Stela (Stella Rabello) a respeito de Ana, misteriosa artista plástica e performer brasileira que teria vivido em vários países e se correspondido com conhecidas artistas latino-americanas dos anos 1970 e 1980. Da Pinacoteca de São Paulo, onde Stela visita a exposição Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1960-1985, a Havana, Buenos Aires, Cidade de México, Santiago e de volta a uma pequena cidade do sul do Brasil, ao mesmo tempo que investiga o destino de Ana, o filme pontua as histórias de mulheres que tiveram sua arte perseguida ou esmaecida nos anais culturais de seus países.
Ana. Sem Título é livremente inspirado na peça de teatro-documentário Há Mais Futuro que Passado, criada em 2017 por Clarisse Zarvos, Mariana Barcelos e Daniele Ávila Small, e apresentada como “um documentário de ficção”. Enquanto a peça sublinhava a invisibilidade da arte feminina latino-americana na historiografia do setor, o filme de Lúcia se permite incluir figuras plenamente reconhecidas como Frida Kahlo – que no entanto foi por muito tempo conhecida apenas como a mulher de Diego Rivera – ou a celebrada cineasta feminista argentina Maria Luisa Bemberg.
Outras artistas cuja memória é visitada incluem a pintora expressionista cubana Antonia Eiriz, relegada ao ostracismo enquanto em Cuba dominava o realismo socialista, e a fotógrafa surrealista húngara Kati Horna, que terminou sua vida no México. No Chile, os recuerdos vão para a muralista Luz Donoso, ativista pró-Allende e integrante de um movimento de resistência anti-Pinochet.
Essas figuras são relembradas através de conversas de Stela com parentes, outras artistas, curadores e representantes de museus, muito embora em vários momentos se instale a dúvida quanto ao estatuto desses depoimentos. O modelo remete a Poucas e Boas, de Woody Allen, e Incidente em Loch Ness, de Zak Penn, filmes citados por Lúcia como referências, no quais a linguagem do documentário era usada para construir uma ficção. Aqui, no entanto, ocorre o contrário – é a linguagem da ficção que se presta ao documentário.
Qual a fronteira, afinal, entre uma e outra coisa? A pergunta se coloca especialmente quando os interlocutores de Stela se referem à enigmática Ana, da qual se sabe que era negra, gay, bonita, carismática e ousada, mas se desconhece o simples sobrenome. Stela, a atriz-pesquisadora, vai formando um contorno a partir das cartas, das fotos e das parcas informações que recolhe em cada país. Aos poucos, Ana ganha um rosto, o perfil de uma companheira, alguns filmes em Super 8 de suas performances radicais e, finalmente, os despojos do seu derradeiro ateliê.
O filme teria a lucrar se o roteiro de Lúcia Murat e Tatiana Salem Levy explicitasse melhor os motivos que levavam Stela a empreender aquela pesquisa com tamanho engajamento emocional. Ainda assim, o dispositivo funciona a contento para ligar os pontos de interesse no projeto do filme. A incorporação da própria filmagem como elemento dramático tem seus melhores momentos quando Lúcia assume sua voz de sororidade em relação às artistas enfocadas e nas cenas em que os membros mais jovens da equipe são instados a comentar o eco da ditadura em suas vidas. “Para nós, negros, o racismo nunca acabou”, diz a técnica de som Andressa Clain Neves.
Às violências da censura, do apagamento e do machismo latino-americano somam-se, em Ana, as agressões do racismo brasileiro. Essa questão corre subjacente a toda a viagem até explodir no belo epílogo, a cargo da atriz e poeta Roberta Estrela D’Alva e do grupo Slam das Minas. O elo entre Ana e a poeta peruana Victoria Santa Cruz em torno do poema Me Gritaron Negra fecha o circuito de um filme tão criativo quanto urgente e politicamente afirmativo.


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