MAIS UM DIA, ZONA NORTE
E uma nota sobre o curta EU FUI ASSISTENTE DO EDUARDO COUTINHO
Cronista da vida de gente comum e incomum do Rio de Janeiro, Allan Ribeiro nos brinda com um de seus trabalhos mais gratificantes. Se Eduardo Coutinho fizesse filmes de observação, talvez fosse algo parecido com Mais um Dia, Zona Norte, grande vencedor do Festival de Brasília de 2023. Não por acaso, Allan brincou com a memória do mestre no seu curta Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho, igualmente premiado (leia mais abaixo).
Quatro personagens principais circulam pela cidade e se cruzam em acasos produzidos pelo roteiro. O filme aos poucos revela camadas de suas personalidades, talentos e ofícios, lembrando de certa maneira o inventivo O Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges.
Valéria, funcionária da limpeza pública, revela-se exímia dançarina de bailes-charme. O comerciante Silvio, apaixonado por musicais do cinema, vai expor suas qualidades num palco. Victor, locutor de porta de loja, leva questões da periferia para suas performances de comediante stand up. A sambista Lara, da escola Engenho da Rainha, bate o ponto numa pequena fábrica têxtil.
Allan constrói cada um desses perfis com a calma de um diretor que amadureceu seu olhar ao ponto da excelência. A forma como ele flagra e compõe os personagens transpira simplicidade e ao mesmo tempo uma doce poética do cotidiano. O informal transcende no rumo de uma estética dos gestos, da lida com os objetos do dia a dia e dos momentos de escape da realidade do trabalho.
Da mesma forma, as interecessões entre eles nascem do lusco-fusco entre verdade e fabulação, entre espontaneidade e construção habilidosa. Algumas figuras coadjuvantes entram em cena para contribuir com o colorido do painel e certamente poderiam render mais um filme.
A geografia do Rio é captada pelos deslocamentos dos personagens entre a Zona Norte (a moradia, o lazer), o Centro e a Zona Sul (a labuta, a evasão). Trem, moto-táxi, caminhadas… Ali acontece uma parte da vida que não é desprezível. Mas o que descortina pontos de fuga para aquelas pessoas é mesmo a relação com a arte, seja ela a dança, o canto ou o teatro.
Daí que o filme transite entre o registro do trabalho e as irrupções artísticas, algumas bastante surpreendentes, contagiantes ou emotivas. Como já havia feito em Esse Amor que nos Consome e Mais que Eu Possa me Reconhecer, Allan Ribeiro vai buscar sementes de criatividade e graça que brotam na existência comum, num dia qualquer, em qualquer ponto da cidade.
>> Mais um Dia, Zona Norte ainda não tem data de lançamento no circuito.
A espiral Allan/Coutinho
A voz de Allan Ribeiro nos conduz pelos meandros do seu curta, que já no título emprega a primeira pessoa. Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho elabora carinhosamente sobre o misto de admiração e reverência dos jovens realizadores ao mestre do documentário. Allan é um dos muitos que almejaram trabalhar com Coutinho. No seu caso, por timidez, nunca foi em frente.
Mas num curta de ficção de 2003, ele criou um personagem que dizia “O meu maior sonho é participar de um documentário do Eduardo Coutinho”. Consta que Coutinho soube disso e sentiu-se homenageado. Cinco anos depois, Allan o chamaria para uma cena de outro curta, Depois das Nove. No argumento ficcional, ele seria enfim assistente de Coutinho numa falsa filmagem à sua maneira. A cena, porém, acabou não entrando no filme.
Allan desfia essa espiral, enfim, em Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho, misto de homenagem, autorreflexão sobre suas escolhas e passeio pelo limiar entre o documentário e a ficção. Os vários takes da cena retirada do curta de 2008 vêm agora à luz repetidamente como uma manifestação do retorno do recalcado, para citar Freud. Servem também para uma brincadeira com a suposta necessidade da imagem como prova no documentário.
O curta já foi premiado em Tiradentes, no Curta Brasília, no Fest Aruanda e no Festival Internacional de Documentários de Buenos Aires.



Pingback: Balanço e favoritos de 2024 | carmattos