A diva Callas e o bruxo Hermeto

MARIA CALLAS nos cinemas e O MENINO D’OLHO D’ÁGUA na TV e streaming

Callas e o canto do auto-engano

“Não consigo mais fazer milagres”, diz Maria Callas a certa altura do filme de Pablo Larraín. Apesar da consciência de que, aos 53 anos, está em fim de carreira, anoréxica e com a saúde ameaçada, a prima donna insiste no auto-engano. Ensaia para alguma futura apresentação que sabe nunca fará, dá entrevistas pra um filme imaginário e finge escrever uma autobiografia. Maria Callas (Maria) embarca nessa trip melancolicamente fantasiosa para sugerir o que teriam sido os últimos dias da diva em seu apartamento parisiense, em 1977.

As fronteiras se confundem entre a realidade de La Callas com seus fiéis mordomo (Pierfrancesco Favino) e governanta (Alba Rohrwacher), os flashbacks e as projeções da imaginação. Assim é que Angelina Jolie vai aparecer diante de um coro de Il Trovatore em pleno Trocadéro ou numa ária de Madame Butterfly debaixo de um aguaceiro. Nem sempre fica muito claro o que o roteiro pretendia dizer, mas é sempre muito bonito na fotografia de Edward Lachman e na suntuosa direção de arte.

O passado irrompe de vez em quando para indicar que a jovem Maria era prostituída por sua mãe na época da II Guerra e para mostrar como ela foi “comprada” por Onassis e depois trocada por Jacqueline Kennedy. Enfim, este não é um retrato exatamente hagiográfico da cantora. Mas tampouco é um perfil muito humanizador.

La Jolie vence quase todos os obstáculos que podiam estar entre ela e a caracterização de Maria Callas. Especialmente nos playbacks da voz original de Callas, ela sustenta uma boa verossimilhança. Se a performance não chega a ser mais marcante, a culpa é do material dramático. Na maior parte do tempo, Maria é vista mais como um ego andante do que uma pessoa de carne e osso. Ela não conversa – dá declarações o tempo todo. O tom de afetação é o mesmo quase do princípio ao fim. Arrisca ficar maçante.

O que muda bastante ao longo do filme é a colocação do piano no apartamento, que ela exige seja arrastado para lá e para cá. Seria uma metáfora de sua inquietação e da dificuldade em encontrar o seu lugar num mundo que a acostumou com a adulação permanente. Pablo Larraín também parece um pouco perdido nesse vácuo da personagem. Daí que não alcance a mesma temperatura dos perfis que já fez de outras supermulheres: Jackie e Diana.

>> Maria Callas está nos cinemas.

Voo livre pelas ondas de Hermeto

Para Hermeto Pascoal, o som é o marido da imagem. Vivem juntos. E esse documentário de invenção de Lírio Ferreira e Carolina Sá embarca nessa ideia para mostrar como é o tal casamento. Ao longo de enxutos 73 minutos, somos expostos a um amálgama indissolúvel de sons e imagens. O filme estreia no canal Curta! e em plataformas.

Os instrumentos no estúdio se tornam abstrações visuais entre desfoques e flares enredantes, como a sugerir a visão limitada do músico. Cenas de feiras nordestinas e de festas indígenas, cantos de aboiadores e banda de pífanos exemplificam as matrizes da música de Hermeto. Que incluem ainda os sons do trabalho, das águas, dos animais e de tudo o que possa emitir algum sinal sonoro. “A música segura o mundo”, diz ele, depois de desfiar lembranças do início da carreira em São Paulo – quando compunha com a cara para fora da janela em viagens de ônibus – e contar como derrota a insônia.

Um áudio de Wynton Marsalis celebrando o talento de Hermeto, logo na abertura, dispensa os realizadores do fardo de passar informações no resto do filme. Ficamos, então, somente com a bela alquimia audiovisual. Na sugestiva montagem de Cao Guimarães, é difícil, senão impossível, distinguir entre o som natural captado nas locações, o desenho sonoro de O Grivo e as criações de Hermeto.

O MENINO D’OLHO D’ÁGUA empreende um voo livre pelas potencialidades de uma música liberta quando “casada” com imagens igualmente desprendidas. É a cara desse gênio anti-teórico, sempre pronto para o improviso.

Daí que ele use um rebatedor de luz da filmagem como tela para pintar a partitura de uma nova composição, chamada justamente Rebatedor. Esse produto inusitado do encontro entre música e cinema é apresentado com virtuosismo ao piano por Amaro Freitas na última sequência. Um grand finale, como merece Hermeto.

>> O MENINO D’OLHO D’ÁGUA estreia no canal Curta! nesta segunda, 20/1, às 22h30, com reprises 21/1 às 2h30 e às 16h30; 22/1 às 10h30; 25/1 às 22h; e 26/1 às 22h30.
A partir de terça estará também no CurtaOn, clube de documentários do canal Curta!, disponível no Prime Video Channels, na Claro tv+ e no site da plataforma.  

 

2 comentários sobre “A diva Callas e o bruxo Hermeto

  1. Louco para assistir O Menino d’olho d’água de Lirio Ferreira e Carolina Sá, principalmente depois dessa resenha que nos coloca em estado desejante! Palavras viram imaginação assim como deve ser o filme desses dois talentosos feiticeiros da imagem. Cinema na veia. Tenho que esperar até amanhã… eita! Murilo Salles

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