Tiradentes: “Oráculo”, “Todas as Melodias”, “Dora, por Sara” e “Mineiros”

Slow, muito slow

Oráculo, integrante da Mostra Aurora, é um slow film composto de apenas sete longas tomadas contemplativas, numa tradição que eu aproximaria do cineasta experimental americano James Benning. Com a diferença de que não existe uma unidade conceitual entre elas, como nos filmes de Benning. Nem é possível extrair do que se vê as muitas intenções expostas na sinopse.

Imagino que o melhor convite é ao devaneio com o que as cenas podem sugerir. Minha experiência particular foi observar as alterações promovidas dentro de cada tomada. As vagarosas contorções de um homem sobre um rochedo e o desvio de câmera que revela outra personagem nas proximidades; a relação desse mesmo performer com as ondas quando ele reaparece como náufrago; as sutis mudanças de ângulo no close de um homem que faz comprida caminhada numa passarela junto ao mar; o efeito da voz de uma menina cantando ao violão no seu quarto; a troca da menina pela mulher adulta num percurso sobre pedras; as suaves inflexões da luz sobre uma paisagem.

Melissa Dullius e Gustavo Jahn (um casal, até onde sei) fazem cinema experimental ligado a seu entorno e viagens. Deles eu já conhecia o longa Muito Romântico, que não contou com minha admiração. Oráculo foi pelo mesmo caminho.

Luiz a capella

Jards Macalé, Zezé Motta, Céu, Liniker e Arnaldo Antunes interpretam músicas de Luiz Melodia sem qualquer acompanhamento no documentário Todas as Melodias. É assim também que o próprio Luiz aparece cantando Estácio, Holly Estácio. O filme de Marco Abujamra evoca a trajetória do compositor a capella, ou seja, sem grandes aparatos, pela simples junção de fotos, filmes domésticos, apresentações de palcos e falas de parentes e parceiros. Pode parecer uma forma cansada de desenhar o perfil de um artista, mas tem seus méritos.

Um deles é discutir a “falta de nexo” das letras de Luiz Carlos dos Santos (1951-2017), que justamente por isso criaram uma poética muito particular e inconfundível. Outro é resgatar o depoimento de Wally Salomão contando como impulsionou a carreira artística de Melodia apresentando Pérola Negra a Gal Costa. “Ele era um garoto que foi terminado de criar por Torquato Neto, Hélio Oiticica e Wally Salomão”, afirma Jane Reis, sua segunda mulher.

As lembranças de todos são cheias de carinho e admiração. Fala-se de sua vida em família e revisitam-se ruas e becos do Estácio, berço do compositor. Ainda assim, Todas as Melodias fica bem longe de dimensionar a singularidade da música de Luiz e a extensão de sua trajetória. Nada é dito, por exemplo, sobre seus começos como intérprete de Jovem Guarda e Bossa Nova. Nem da reputação de artista maldito que por vezes colocou em risco seu percurso. Um pouco mais de pesquisa faria bem a um documentário que pretendia abranger vida e obra.

Nas filmagens de depoimentos atuais, a insistência numa câmera em contraplongê (de baixo para cima) parece um mero capricho sem justificativa. Musicalmente, alguns momentos são preciosos, como o dueto sensualizado com Zezé Motta. Mas talvez o mais emocionante seja a performance de Magrelinha com orquestra que encerra o filme. Nos antípodas do a capella, por sinal.

Sara e Dora no espelho

Algumas atrizes correm o risco de ficarem parecidas demais com suas personagens. Sara Antunes viveu intensamente a figura épica e trágica de Maria Auxiliadora Lara Barcelos no longa Alma Clandestina, de José Barahona. Naquele filme, Sara entregou-se à emoção a tal ponto que já não conseguíamos mais distinguir atriz de personagem. O eco ficou em sua memória para ressoar novamente no curta De Dora, por Sara, agora dirigido por ela mesma.

Um espelho sinaliza o reflexo de uma sobre a outra. Sara lê um texto inspirado em escritos e três cartas de Dora à mãe – uma ainda na prisão política em 1970; outra do exílio no Chile em 1973; e uma terceira de Berlim, onde a ativista se atiraria debaixo de um metrô em 1976. São cartas que falam de si e do Brasil, com frases fortes como essa: “Para compreender a anatomia do povo brasileiro, Medicina só não basta”. Dora era médica antes de entrar para a luta clandestina contra o regime militar. Não creio que isso justifique a inserção de imagens intracorporais no curta, o único elemento que me pareceu dissonante.

A simbiose vai além da mera performance e da maneira como Sara reencena voz e gestos de Dora.  As respectivas mães são incorporadas por conta de um par de coincidências: a mãe de Sara nasceu no mesmo ano e na mesma Minas Gerais que Dora. O marido, pai de Sara, também foi preso político e exilado. Num gesto comovente, a atriz coloca sua mãe virtualmente em cena para fechar um círculo de afeto, reconhecimento e dolorida emoção. “Por que ela não está mais aqui?”.

Nessa bonita operação de espelhamentos, Sara imprime em carne e osso uma lembrança que deveria tocar o coração de todos os brasileiros do bem, e não somente o dela e o de Dilma Rousseff, a quem pertence a derradeira voz que se ouve no filme.

Sara Antunes, que também é dramaturga, vai apresentar, ainda este ano, uma peça de teatro virtual que vem gestando sobre Dora. Leia mais aqui.

Sentimento de uma cidade

Por 17 dos seus 23 minutos, o curta Mineiros, de Amanda Dias, é o vasculhamento silencioso de uma região de Minas afetada pelas recentes catástrofes de Mariana e Brumadinho. Vemos imagens de uma pequena cidade vazia, as casas deixadas com o cotidiano subitamente interrompido por um alarme da Vale do Rio Doce em 2019. Entre os poucos sinais de vida estão os latidos de cães, um cavaleiro que passa. As placas assustam: “Rota de fuga”, “Perigo. Proibido permanecer nessa área”. “Casa em área de risco”.

O município de Barão de Cocais fica próximo à mina de Gongo Soco, antiga mina de ouro ultimamente explorada pelo minério de ferro. Ainda não foi atingido diretamente pela devastação física, mas sim pela devastação humana. O risco de rompimento de uma barragem levou à retirada dos habitantes, que até hoje aguardam a hora de poder voltar para suas casas. O silêncio mortífero é cortado pela voz de um morador que denuncia os interesses da Vale em remover a comunidade para expandir a mineração.

Em seu tom lacônico e conotativo, Mineiros transmite o sentimento de uma cidade, um estado e um povo que já forneceram grande parte da riqueza do país e hoje se veem vítimas da ganância e do descaso.   

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